A ordem do discurso faz diferença no debate sobre os direitos fundamentais?
A resposta só pode ser afirmativa, e talvez isso mereça nossa atenção.
Na recente decisão da Suprema Corte dos EUA que reverteu o caso Roe versus Wade de 1973 a respeito da decisão sobre o próprio corpo por parte das mulheres isso ficou evidente.
Em 1973 tal decisão teve como fundamento o direito à privacidade, isto é, a decisão sobre o próprio corpo é das mulheres, e não do Estado, das maiorias, ou das religiões. Trata-se de um exercício de autonomia do sujeito frente a essas referências heteronormativas.
Na mudança ocorrida em junho de 2022 a decisão foi no sentido de que tal tema não deriva diretamente da Constituição Federal, e que cabe aos Estados membros da federação legislar a respeito.
Como a notícia foi difundida pela mídia?
A Suprema Corte dos EUA autoriza a proibição ao aborto.
Tal redação é sinônima da frase: A Suprema Corte restringe o conteúdo material do direito à privacidade?
Certamente que não, são frases distintas, mas que poderiam ser aplicadas ao mesmo fato. Outro exemplo do mesmo contexto, quando no conteúdo da decisão a Suprema Corte dispõe que não compete à jurisdição constitucional decidir a respeito da interrupção da gravidez.
Nesse ponto, a decisão sobre os limites da jurisdição constitucional, necessariamente e obrigatoriamente, é uma decisão sobre jurisdição constitucional, pois define os seus limites.
Ao debate público, portanto, torna-se relevante o equacionamento adequado de temas complexos a partir da semântica dos direitos, de modo a existir clareza a respeito do conteúdo dessas decisões, como também das funções dos poderes responsáveis pela defesa da Constituição em sociedades plurais e com alto grau de dissenso.
Ao decidir sobre o aborto, a Suprema Corte dos EUA está esvaziando um conteúdo substantivo do direito à privacidade, esvaziamento que pode, inclusive, ter repercussões em outras matérias igualmente caras ao debate sobre os direitos das minorias em sociedades democráticas.
Ao definir que tal matéria não é objeto de jurisdição do Tribunal, o órgão está restringindo sua esfera de atuação e, inclusive, autorizando legislações nos mais variados sentidos, algumas até em detrimento dos direitos fundamentais.
Em temas de alta complexidade, o equacionamento adequado da sua composição é essencial para a sua melhor compreensão e deslinde no âmbito do debate público.
Esse é o nosso dever enquanto cidadãs e cidadãos comprometidos com a possibilidade de organização de uma sociedade democrática.
Samuel Martins – OAB/SC 26.336
MARTINS & KLEIN ADVOCACIA